As falsificações

OLAVO BILAC (1865-1918). Crítica e fantasia, Livraria Clássica Editora de A. M. Teixeira, Lisboa, 1904, p.213-220 (originalmente em Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, ano XXX, nº 291, 18 de outubro de 1903, p.1).

Retrato de Olavo Bilac
Retrato do escritor Olavo Bilac
(Arquivo Público Mineiro, Belo
Horizonte MG)

"Castagneto, o nosso admirável pintor de marinhas, o incorrigível boêmio que dissipou o talento e a vida com a mesma risonha facilidade do conde de Monte Cristo dissipando os seus milhões e com a mesma natural indiferença do duque de Buckingham deixando cair as pérolas do manto na corte de Luiz XIII, – Castagneto acaba de ter a mais fúlgida das consagrações post mortem. Descobriu-se agora que há uma grande quantidade de marinhas, assinadas por esse pintor, e que não passam de cópias, multiplicadas e nem sempre fiéis, dos seus quadros. Castagneto está sendo 'falsificado'!

Já o século passado mereceu o nome de 'século das falsificações'. O século atual, que apenas começa a decorrer, há de prezar esse legado glorioso, e aperfeiçoar, na medida das suas forças, a arte da fraude. Falsifica-se tudo: o que se come, o que se bebe, os tecidos com que fazemos as nossas roupas, os remédios com que damos combate às nossas moléstias, os objetos de arte com que encantamos os nossos olhos, a formosura das mulheres, a robustez dos homens, a ingenuidade das crianças, – tudo! Até o ar, a luz e a água, – esses três dons gratuitos da generosa Natureza, – não tardam a ser falsificados. E, daqui a pouco, um Edison qualquer, falsificando a Vida, apresentar-nos-á um autômato perfeito, um boneco maravilhoso, que respire, ande, coma, digira, durma, gesticule, fale, sinta, pense… e ame! – e haverá fábricas de homens artificiais, sans garantie du gouvernement

Castagneto acaba de ter uma radiante consagração. Só se falsifica o que é bom e o que vale dinheiro. Ninguém falsificou ainda a areia da praia, – que se obtém de graça; e ainda não há mulher moça que embranqueça os cabelos e encha de rugas a face para parecer velha, como ainda não há homem superior que esconda a inteligência para parecer estúpido; mas, se algum dia a areia da praia, a velhice e a estupidez tiverem cotação no mercado, a areia monazítica far-se-á areia comum, a adolescência disfarçar-se-á em caduquice, e o gênio desandará a zurrar… Por ora, o que se falsifica é o que é bom, e o que vale dinheiro: é o ouro, é o diamante, é a mocidade, é a beleza, é o talento, é a nota de banco, – e só está sujeito à exploração da fraude o que representa um certo valor pecuniário ou moral. E é a fraude quem está dando a Castagneto a glória que a legitimidade lhe negou…

Pobre Castagneto! Sem ambições e sem tristezas, desprezando igualmente o dinheiro e a fama, amando apenas a natureza, a vida, a alegria e a arte, – pintando marinhas, como as aves cantam e como as roseiras dão rosas, por uma necessidade criadora e fatal, – esse belo rapaz nunca se revoltou contra a indiferença dos contemporâneos, porque foi sempre o primeiro a não dar valor às suas telas, 'aos seus botes', – como ele dizia na sua gíria pitoresca.

Não havia aspecto do grande mar inquieto que lhe não inspirasse uma composição; e o pincel ia reproduzindo esses aspectos na tela, no papel, na tábua, em qualquer tampa de caixa de charutos, em qualquer prancha de grosseiro caixão.

A execução era rápida e maravilhosa. O pincel e a espátula criavam ali, num relâmpago de gênio, toda uma vasta massa de águas, animada de vida palpitante. Assim que ficava pronta, – ou quase pronta, porque Castagneto não tolerava os sacrifícios do labor demorado, – a marinha saía logo de suas mãos, passando para outras mãos, de amigos ou de indiferentes, vendida por qualquer coisa, ou cedida de graça, com essa liberalidade simples e afetuosa, que só pode caber em coração de boêmio ou… de anjo.

Somente a morte veio interromper aquela prodigiosa produção incessante. O mar perdeu o seu melhor amigo, e a limitada roda artística do Rio de Janeiro perdeu o mais interessante dos seus tipos de boêmio.

Esgotada a nascente das formosas telas, o legado do pintor começou a valorizar-se. Esse valor cresceu tanto, que as telas verdadeiras já não bastavam para a procura, – e a fraude encarregou-se de renovar o milagre bíblico da multiplicação dos pães, copiando e recopiando os quadros em que fecundo pincel fixou a mobilidade das ondas largas, batidas de sol ou prateadas de luar, em suave arquejo ou em fúria terrível, cheias das oscilações das velas e dos mastros.

Esta mesma Gazeta, noticiando anteontem a descoberta das falsificações, e consagrando algumas linhas enternecidas à memória do pintor, perguntava: 'Quando o amargurado Castagneto, que passava dias sem comer, poderia pensar que o falsificariam assim, vendendo-o por um preço extraordinário?'.

Quando pensaria? Nunca. Como pensaria no futuro quem nunca se preocupou com o presente? Ainda agora, se pudesse ter conhecimento do que se passa na terra, Castagneto não teria pesar nem indignação; levantaria os ombros, com aquele seu absoluto e olímpico desdém pelas coisas da vida, e não se encolerizaria contra a fraude, nem se orgulharia com a consagração. Apenas é possível que a sua infinita modéstia e o seu completo desinteresse experimentassem algum espanto: 'Como?!… pois é verdade que os meus botes valem alguma coisa?'…

Este exagerado progresso da mania de falsificar tem em si mesmo o seu corretivo. À medida que cresce a perícia dos falsificadores, cresce também a desconfiança dos compradores. Assim que se descobriu a falsidade da famosa tiara do Louvre, começou a pairar a suspeita sobre a legitimidade das outras preciosidades do museu. E por todo o mundo anda acesa a batalha entre a astúcia e a prudência, entre o gênio inventivo dos impostores e a cautelosa reserva dos clientes.

Todos os gêneros, – de arte, de indústria, de alimentação, de vestuário, de luxo, – estão desmoralizados. Os cambistas fazem tinir, repetidas vezes e demoradamente, sobre a aba do balcão, as moedas que lhes oferecem; os prestamistas não adiantam um vintém sobre uma jóia, antes de um demorado estudo; quem pede a um garçon de confeitaria um cálice de licor, examina logo o rótulo da garrafa, com uma chispa de má vontade no olhar; quem contempla uma bela senhora no verdor da mocidade, pergunta logo a si mesmo se aqueles cabelos e aqueles dentes não saíram da oficina de um cabeleireiro perito ou de um hábil dentista; já nada, enfim, merece confiança; e, para evitar o logro, toda a gente trata de pôr em contribuição o exercício dos seus cinco sentidos desenvolvidos e apurados pela experiência e pela prevenção.

E, depois de trocada a moeda, de empenhada a jóia, de bebido o licor, de contemplada a beleza da senhora, e de exercida a ação combinada do olfato, do tato, do ouvido, do paladar e da vista, – ainda a gente fica com uma pequenina e impertinente pulga atrás da orelha e uma dúvida importuna dentro da alma…
Para os falsificadores, isso não é cômodo: esse alarme contínuo rouba-lhes a calma e envenena-lhes os louros da profissão. De maneira que, não obtendo jamais uma perícia completa e infalível, e sentindo que o solo lhes falta debaixo dos pés, os exploradores do crime arrepiam carreira, e voltam à pratica dos antigos dolos, que, com a sua ingênua simplicidade, ainda podem dar resultados ótimos.

Vede o caso das estampilhas. Para falsificar treze mil contos de estampilhas, a quadrilha seria forçada a adquirir maquinismos complicados, a tentar experiências dispendiosas, e a comprometer na incerta aventura um vasto capital de dinheiro e de tempo.

Quando as estampilhas estivessem prontas, – como escapariam as suas imperfeições à argúcia dos peritos? O microscópio revelaria o desvio de um micromilímetro em qualquer linha de desenho: e é sabido que nunca a mão humana traçará dois desenhos perfeitamente iguais, – como não há duas folhas perfeitamente iguais na copa da mesma árvore, nem dois cabelos perfeitamente iguais na cabeça do mesmo homem. A aventura seria arriscada. Mais valia procurar nos antigos e excelentes processos da ladroeira os lucros que o exercício das artes modernas não podiam assegurar com infalível certeza.

Foi o que fizeram os avisados meliantes. Para que fabricar estampilhas falsas, – se aquela formosa e opulenta Casa da Moeda, de portas tão largas e de tão fácil acesso, com sentinelas tão mansas e cofres tão fracos, guardava dentro de si tantos milhões de estampilhas autênticas, legítimas, confirmadas, conferidas, chanceladas, e verdadeiras como a própria Verdade?

Treze mil contos! É força confessar que a empresa foi audaz e brilhante… E, se pensarmos que grande parte desse estoque de estampilhas já foi trocado por muito bom dinheiro, tão bom e tão verdadeiro como elas; e, se pensarmos ainda que o pálio salvador do habeas-corpus, bandeira-da-misericórdia de todas as espertezas, não deixará de cobrir os empreiteiros desse colossal negócio, facilmente reconheceremos que andaram bem avisados os que preferiram lançar mão de valores reais a fabricar valores suspeitos.

Não há falsificação que afinal não seja descoberta. E todas as malícias e todas as sutilezas infernais da fraude acabam por ser apenas a glorificação do que é legítimo e puro.

Castagneto lucrou com a esperteza dos impostores. Os possuidores das suas marinhas autênticas vão agora olhá-las e prezá-las com redobrado amor. Os bons vinhos só começam a parecer verdadeiramente bons, quando cotejados com as zurrapas que pretendem concorrer com eles; e as belas mulheres, de uma beleza simples e nua como a própria Natureza, só começam a parecer verdadeiramente belas quando postas ao lado das belezas artificiais, devidas à colaboração do carmim, da tintura circassiana, do khol, das dentaduras postiças e dos chumaços de algodão".